E vou ser feliz!
Penso no auge da minha juventude dos meus 70 anos que envergo, amparados na bengala de raiz de sobreiro ornamentada pela mão do meu avô há alguns anos da vida dele.
Penso assim não por ter a certeza de que tenha muito para viver, mas porque tenho a certeza inabalável to tic tac do meu coração e pelo funcionamento perfeito do motor do meu cérebro.
Tenho tanta certeza de tal facto como tenho do modo de vida que quero usufruir.
Não quero uma vida regalada de sensuais prazeres nem de grandes excentricidades. Não quero nada disso. Quero viver o dia de cada vez pela forma como o sol nasce e pela forma como a lua surge no meio das constelações de estrelas que lá no tecto umas piscam quietinhas e outras viajam deixando um rasto de luz. Quero pintar estas folhas brancas a caneta de feltro enquanto gatinho e espero que a minha mãe me embale no sono de sonho.
Quero olhar para os meus netos com a lágrima do meu ontem, com o meu sorriso do hoje e com o olhar do amanha.
Penso que a guerra interior que enfrentarei num amanha próximo pelos meus amores e desafores, pelos castigos e descrença, pelas ideologias hipocondríacas e hipócritas socio-politico-económicas terão toda a influência quando eu atingir o auge dos meus 70 anos.
Acredito que a catarata que inflige o meu globo mundial ocular resultou na tentativa esforçada de naufragar em águas tenebrosas de pouca lucidez juvenil.
De qualquer das formas sei que fumar o cigarro ali no canto escondido da escola ou enquanto os pais dormem, é errado. Se sou apanhado certamente que jogarei à apanhadinha, mas o prazer da minha idade juvenil é esse mesmo, jogar à apanhada e ás escondidinhas…
Agora jogo mais à apanhadinha com a minha sombra no tabuleiro do xadrez. As pernas aos 70 anos já não têm o mesmo óleo de que quando se tem 20. Ou se o tem, certamente é um óleo enganoso. Mas diga-se de passagem que não há assim tantas sombras, com 70 anos, que faça um xeque-mate tao perfeito quanto a minha sombra.
Até eu, por vezes fico estupefacto a olhar para as jogadas que o meu pai faz com o meu avô. São dois mestres. Eu com tenra idade de puto, fico maravilhado a ver aqueles dois exemplos humanos a partilharem sabedoria em torno das peças de xadrez, e sempre, sempre com um cálice de vinho do Porto, a molhar a ponta dos lábios.
Lá tem que ser, que o mal dos 70 anos de falatório é que a secura já se sente de forma brusca e então, há que volta e meia, lá se molha o bico e água não puxa carroça e glum glum lá vai mais um trago para molhar o bico.
E por falar em bico, e se eu vos contar que ontem no meu 22º aniversario, o restaurante se esquecem de encomendar o bolo de aniversario que eu tinha requisitado. E como não havia bolo, lá tivemos que improvisar com bicos de pato. Que parodia que foi.
Mas, ao cabo das minhas 70 primaveras continuo sem perceber o porque do bico de pato. O pão agora faz qua qua???
Uma coisa é certa, o vinho de Porto que molha a goela sempre serviu para afinar a minha corda vocal. À pois, que isto de ser contralto no coro da Igreja tem que ser muito bem cuidado. Tão cuidado, mas tão cuidado, que o padre da paróquia quando me ouviu cantar pela primeira vez disse-me logo:
- Oh rapaz vai beber um vinho do Porto que é para ver se afinas isso. Bem, jus seja feito ao padre, que é isso que eu tenho feito. Mas não sei porque, sempre que eu vou cantar o salmo, as pessoas se ajoelham em forma de acto de contrição. Nunca percebi porque!
No centro de dia, sou conhecido por ser o Sr. Feliz. Apesar do meu nome nada ter haver, com sinónimo retirado de tal palavra de um dicionário. Sempre que me chamam por tal eu digo. Não sou feliz, sou coração sorridente. E é com esta certeza certa que sei que serei feliz. Porque sei o que fui ontem, sei o que sou hoje e sei o que serei amanhã. Não possuo fantasmas, porque esses, eu afastei-os há muito. Deixaram de querer convívio comigo. Acho que a minha catarata lhes provocava vertigens, e a diferença entre mim e a criança que gatinha é apenas uma. Ela usa fralda, eu não, a semelhança. O sorriso inocente. E com esse sorriso idêntico ao de uma criança que se diverte na pura das inocências, apenas nos transporta a um limiar de felicidade rítmica, apontado pelo tambor do nosso coração e pela lucidez da nossa mente.
Eu vou ser feliz!
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