sábado, 16 de junho de 2012

E os Deuses choram... Oh Santa e Divina lágrima


E assim começa o dia… com a chuva caída lá do alto das neblinas cinzentas. Caem sobre mim.
Os meus pés, enlameados e encharcados caminham estrada fora, sem abrigo possível e meu corpo começa a ficar ensopado.
E a chuva cai sobre o meu corpo. São lágrimas que caem lá do céu. Tão finas que cegam a visão. Tão finas que não se vê a criança que chora, o idoso sozinho e abandonado em seu lar, a chorar, triste e solitário, apenas com a sua rouca grafonola a tocar um vinil. Aquela criança ali prostrada na berma da rua cheia de fome e sem nada para comer, faminta de alimento e de carinho, sem um brinquedo…
E os deuses lá em cima choram. Choram pela podridão humana, que desamparam desacreditam.
Vêem uma mulher a ser espancada, a ser violentada, violada, apedrejada, queimada, torturada, agredida pelo próprio marido.
Aquele homem, trabalhador de uma vida e de mãos calejadas, sozinho e desamparado, sem qualquer apoio, encaminhado a mudar o seu posto de trabalho para as paredes que ostentam o seu tecto, porque o seu patrão quis poupar uns trocados.
E os deuses choram. Choram pelos milhares de pessoas abandonadas, choram por aqueles que tudo possuem e nada tem.
E nós caminhamos, debaixo dessas lágrimas. Aqueles que estão lá no céu choram, de pena por nós que tudo e não temos nada. E enquanto os deuses choram, nós rimos e sorrimos. E sorrimos para os outros enquanto temos vontade de chorar e de gritar.
Porque não temos a puta da coragem de olhar para a pessoa que está ao nosso lado. Porque temos a coragem de olhar para quinhentos mil quilómetros de distância e vermos a criança que chora e que não tem nada para comer ou brincar, enquanto não temos a puta da coragem de vermos a criancinha que está a um metro, um centímetro, um milímetro mesmo ao nosso lado e nós não a vemos. Porque é pequena e fica fora do nosso ângulo de visão. E os deuses choram. Choram porque temos a puta da coragem porque vemos alguém a milhares de quilómetros que se suicidou por desespero da ausência de um afecto, enquanto fechámos os olhos ao olhar de quem a nosso lado nos implora silenciosamente por um abraço, por um carinho, por um sorriso, por um “olá estas bem?”.
E os deuses choram. Choram pela puta da nossa insensatez, da nossa insensibilidade e da nossa insegurança. E dizemos nós que estamos no In. Só se for no Inout.
Passo na passadeira com o semáforo vermelho. O carro apita, mas não pára. Tudo bem que eu cometo uma contra-ordenação, mas o motorista do luxuoso brinquedo não poderia usar o pé para o travão em vez da mão para a buzina? Ou será que é a buzina que vai evitar que eu seja estupidamente (da minha parte e do Sr. rodinhas) que eu seja luxuosamente atropelado?! Ok, não tenho razão, neste termo.
E os deuses choram! Choram pela loucura incurável daqueles que se julgam loucos. Insanidade parca.
As pessoas vêem-me a falar sozinho e julgam-me de louco. E não o sou… E talvez até o seja. Mas falo pelo menos. Comunico, soletro, grito, gesticulo. Falo com o ar, com o vento, com os meus botões e com ninguém. E nenhum deles me responde, mas eu falo. E eles ouvem-me. Sou louco porque falo sozinho. Oh Santa loucura. Internem-me porque os botões já não me aturam. Eles já não se colocam à janela. Saltam dela fora em jeito de suicídio. Internem-me.
E os deuses, choram…
E eu volto a passar um vermelho e nova buzinadela. E se as pessoas reparassem que eu tenho as lentes completamente inundadas de lágrimas divinas, porque é difícil conduzir os pés, enquanto os olhos estão inundados. E não os posso limpar porque numa mão seguro o gravador e na outra o cigarro, os deuses continuam a chorar e as minhas lentes continuam encharcadas e eu sem pára-brisas.
E os deuses continuam a chorar. E continuarão enquanto aquela mulher está a ser agredida por aquele que lhe prometeu fidelidade e amor, respeitá-la na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, e que lhe lincha o corpo que o amou. E enquanto leva, forçosamente, sapatadas de carinho, tenta usar o telefone para pedir auxílio aos senhores azuis, que lhe dizem que sem provas nada é possível fazer. Aparece morta junto à casa dos senhores azuis, com três facadas, dois tiros e dois olhos à belenenses. Sem provas. Sem a puta da coragem de erguer a cabeça e ver que as provas já levam 15 anos de duro amor…
E os deuses choram. Choram porque não temos a puta da coragem de denunciar o que deve ser denunciado e erguemos as mãos ao alto enquanto os senhores engravatadinhos passam a orar na tribuna presidencial e nós dizemos ámen. Enquanto comem o nosso caviar e bebem do nosso champanhe e aquele idoso nem um chavo tem para comprar o comprimido para o Alzheimer.
- O que é isso?
- É aquela doença que…
- Não, não. o caviar?
- Não sei. Os engravatinhos de sapatos envernizados lambuzam-se e não deixam nem um para sobremesa. Pois também nunca temos sobremesa.
E o desempregado fica sem casa e o engraxadinho viaja de jacto para sabe-se lá onde…
E os deuses choram. Porque vemos demasiadamente nítido ao longe. E ao perto, temos os olhos encharcados de lágrimas.
E os deuses choram. Choram porque aquele que prometeu fidelidade aos momentos de oração, de amor ao próximo, de espalhar as palavras de amor e bem-aventurança, de levar uma vida casta e de abstinência sexual, se envolve com uma loira que lhe troca os sentimentos todos. Que as juras de amor ao próximo fora substituída pelo amor à próxima. E não usa o caminho correcto, mas o errado e se julga superior a todos os outros. Critica e faz julgamentos. Dono do seu umbigo e sem olhos para os outros. E os deuses choram. Choram pelas atitudes surreais e hipócritas da sociedade em que se vive. Do catolicismo às politiquices. Choram pela transformação una, santa e hipócrita da igreja com a política.
E os deuses choram. E continuarão a chorar. Enquanto nós não tivermos a puta da coragem de atribuirmos um louvor aquele que está aqui no cantinho a nosso lado. Enquanto não tivermos a puta da coragem de abrirmos a porta do nosso ser aquele que está ali pronto a suicidar-se porque não tem quem lhe sorria. Porque temos a puta da coragem de crucificar quem julgamos ser a podridão da sociedade e não crucificamos quem realmente é podridão da sociedade. Um toxicodependente é uma pessoa e não um animal. Um sem-abrigo pode sorrir tanto quanto um abrigado. Um abrigado pode chorar tanto quanto um sem-abrigo.
E os deuses choram. E continuarão a chorar, mesmo que o sol brilhe lá no alto e nós cantemos hinos de alegria. Os deuses continuarão a chorar porque nós, não lhes dá-mos sorrisos nem sois, nem amores para que as lágrimas sequem.
Oh santa e divina lágrima

7 comentários:

  1. MUITO BOM SEU TEXTO, GOSTEI DEMAIS, PURA VERDADE
    E SABEDORIA SOBRE UMA QUESTÃO TÃO SÉRIA QUE NOS
    TEMPOS ATUAIS SE TORNOU TÃO BANAL, MUITO OBRIGADA
    BEIJOS. SILA.

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  2. Muito bonito,com muito sentimento cada palavra proferida(escrita) por este jovem.
    Parabéns!

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  3. Obrigado pelos vossos comentários. é sempre bom ouvir (ou ler) as apreciações por aquilo que escrevemos ou descrevemos. espero que me continuem a ler :) beijos e abraços

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  4. lindo e profundo texto..., grandiosiosidade e sabedoria, parabéns, adorei..., obrigado por nos contemplar com tamanha sabedoria de puros sentimentos, bem haja...

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    1. Obrigado pelas suas palavras e fortelecimento pelos meus sarrabiscos....espero que me continue a acompanhar :)

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