sábado, 14 de julho de 2012

Seus olhos apenas observam o que a sua ilusão ainda o permite.

O uivo do lobo ainda ecoa no alto do céu e já a lua não lá mora. No seu lugar, brilhante, o sol começa a raiar os seus primeiros sinais de que um novo dia teima em se iniciar.
De sandálias nos pés, vagueia entre a cama até à janela num sonambulismo de quem acaba de acordar. Encosta a cabeça sobre a ombreira lateral e afasta os cabelos da frente do globo ocular. As suas pupilas prometem levar até ao seu cérebro o mais estupendo nascimento do dia e os seus ouvidos, esses que nada ouvem e tudo escutam, deixa entrar sobre si, a melodia dos canários que sobrevoam em bailado a torre da sua janela.
Não se prepara para sair. Hoje o dia será seu. Uma chávena de chocolate de Bissau e engole soprando na tentativa de arrefecer um pouco a água acastanhada de forma a não esquentar a sua garganta.
Prostra-se sobre a cadeira de baloiço, inicialmente a ler as notícias de ontem publicadas no jornal de hoje, mas depressa a sua retina se farta do costume noticiário. Seus olhos buscam um ponto fulcral no terreno cimentado em quatro paredes, desfolhando, quadro a quadro, imagem a imagem, apenas encontrando em cada fenda um rasgo para a sua presença inócua e soterrada.
Ergue-se, deixa as suas mãos envolverem o cabelo numa longa trança ate à cintura e valsa com ela pelo corredor até á sala das suas memórias nunca esquecidas.
Abre o álbum de fotografias. Observa atentamente uma a uma e entre tentativas parcas de sorrir e conseguidas lagrimas fugidas do canto sobrolho, vai recordando os caminhos, as vidas, as pessoas, as paisagens, as memorias, e o seu coração. Esse coiso que perdera sabe-se lá onde, como e quando.
Na sua mão direita agarra firmemente o cálice sagrado do licor de medronho, o único amigo das horas vagas eternas, que embebeda a garganta a cada gole, enquanto afaga as lágrimas por não saber de si mesma.
Volta à janela, observa o que de fora se passa. Agricultores se aventuram de enxada na mão socalcando a terra, cavaleiros heróicos empunham a sua espada de forca, bobos engraçam a plateia deambulante no meio das ruas enquanto anseiam comprar por uns trocos um pouco de alimento ou de tecido.
Seus olhos apenas observam o que a sua ilusão ainda o permite.
Deleita-se sobre o verde manto da erva da sua cama. Inspira um ar fútil do qual já pouco ou nada lhe fortalece os pulmões e fecha as persianas da face. Ilumina a sua mente vagueando por locais inóspitos, profundos debaixo de um céu estrelado pelas lagrimas perdidas no universo.
Uma tuba toca no canto lírico de uma voz aguda e macia. Uma ilusão auditiva imaginada por uma ilusão visual de quem encanta o seu sonho.
Um sopro inunda o seu ouvido num sussurro delicado. Acorda, estranha e não vê ninguém. Uma nova ilusão a penetra, ou um desejo irreal de quem a possuía nesse segundo.
Fixa de novo o olhar na parede. O quadro emoldurado sobre o sisal parece que ganha vida. Observa-o atentamente como se em diálogo existisse uma ferramenta, talhada àquele momento. Conversam silenciosamente em sons mudos. Apenas o chilrear dos milhafres que esvoaçam o alto do céu, teimam em cortar aquele rugido seco e mudo. Aquela figura presa á parede lhe fez perder o tino das emoções e abraçasse a algo inerte na parede. Deseja que a figura masculina se solte daquela prisão e se abrace a ela.
Um novo trago de medronho sente trespassar a garganta, passando pela laringe, faringe e descendo ate ao estomago, fazendo-a cair lentamente sobre o chão de madeira de carvalho envernizado. Contorce-se em sopros de lágrimas na ternura da solidão.
Crê que lhe tenham roubado o desejo carnal. Procura as suas partes íntimas em caricias próprias como se o preso sobre quatro estacas de madeira, a estivesse fixamente a ver e loucamente se despedaçasse em desejos carnais por ela. Contra ela própria se beija, se deseja, se festeja em ternas e loucas fantasias de desejo de possessão.
Sente que uma mão e uns olhos a perseguem pela sua pele lhe desejando amor e beijos e abraços e caricias e desejos. Ergue-se sobre as suas trémulas pernas, nua, tal e qual como fora colocada ao mundo e grita a plenos pulmões liberdade.
A sua imaginação perde-se a cada trago daquela bebida. A sua única fonte que lhe seca a sede. A sede de vida, a sede de amor, a sede de ver, de tocar…
Perdera toda a sensibilidade, todo o sentido, toda a vida…
Deita-se na banheira, lavando sua pele em lágrimas perfumadas no licor. E adormece. Profundamente, suavemente, eternamente. De olhos fixos no preso em quatro estacas na parede de pedra.

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