Um novo dia submerge por entre as cortinas de seda. Um raio de luz ofusca seus olhos ainda meios cerrados numa tentativa fosca de os abrir. O sono, esse, ainda pesa sobre seu corpo dormente que teima delicadamente em se refastelar sobre o colchão que o aninha.
Fora do seu antro, já se ouvem os pássaros a chilrear numa orquestra de bicos afiados e afinados. O sol acabara de despertar e consigo trazia a leve sensação de que estaria no momento menos oportuno para si mesma acordar também. Afinal de contas a noite tinha sido longa.
Jaz adormecido corpo dormente, a custo, muito custo se faz erguer sobre pernas trémulas que se dirigem aos ziguezagues pelo chão momentaneamente se transformado em colinas e em curvas, até à casa de banho.
Passa a cara por água fria de jeito analfabeto, esfregando os olhos forçando-os a abrirem-se repentinamente. Centra sua fronte sobre o espelho observando as olheiras produzidas pela noite. Pela longa noite.
Uma mancha abaixo dos seus seios prende o seu globo ocular meios ennovados. Uma mancha escorrida de uma tinta vermelha avermelhado de uma cor bem garrida. Meia fresca ainda. Mas sem cheiro. Mas ainda um pouco quente.
Afastasse repentinamente sobre o que produz o seu reflexo, obrigando-a a ver-se a si mesma, o seu pranto e aquela mancha garrida na sua camisa. Sabia que se tinha deitado como acabara de chegar mas não se recordava muito do que acontecera durante aquela noite
Entre copos e pastilhas a noite se fora dançado perante as horas e os homens que se apoderavam do seu espaço corporal.
Sua mente alucina perante pensamentos de sucessão. Queria rapidamente, percorrer todos os segundos essa noite. Queria descobrir de onde jorrara aquela mancha avermelhada.
Prostra-se sobre o chão molhado da bacia caída inundando todo o chão de água.
Lágrimas inundas prestam-se a sair da cavidade ocular, temendo acontecimentos horrendos, monstruosos, fantasmagóricos. Rasga a camisa com toda a intensidade de desespero, desnuda-se aflita de rancor pela oculta memória esquecida.
Recorda-se de pequenos flaches que lhe entram pela mente, infundindo-a de lembranças como os homens a infundiam naquela noite.
Submerge sobre si que havia um ser de pelos masculinos que a observara durante a noite. Tatuagens nos braços, piercings na orelha e no nariz, uma cicatriz na maça do rosto, e uma barba rija a escorrer pelo queijo.
Aquela alma pintada e perfurada não lhe saíra da memória. Sabia que ele viajara com ela pelos locais mais insurrectos do planeta. Num planalto de tantos machos a saborearem a brisa feminina, aquele tatuado por algum motivo se afincara no seu mundo, prendendo-a invisivelmente como se fosse um dos seus arganis. Amedrontada pelo desconhecido sucedido, e não permitindo que a sua massa encefálica se afunde em águas profundas provendo um feroz e provocador ataque de algum golfinho transformado em tubarão, ou mais provavelmente um tubarão mascarado de golfinho, deleita seu corpo sobre a almofada, proibindo-se de viajar. Sol de pouca dura. Tinha que descobrir que la mancha era aquela.
Ela não fazia intuito algum virar de gaja provocadora, a uma nova versão de pirata la mancha. Liga televisão sintonizando noticiário em busca de um ícone passível de esclarecimento. Nada. Raios. Apenas politiquices e desporto. Espera, algo momentaneamente lhe prega a atenção:
"Noticia de última hora, homem tatuado encontrado mu tilado..."
Ela não fazia intuito algum virar de gaja provocadora, a uma nova versão de pirata la mancha. Liga televisão sintonizando noticiário em busca de um ícone passível de esclarecimento. Nada. Raios. Apenas politiquices e desporto. Espera, algo momentaneamente lhe prega a atenção:
"Noticia de última hora, homem tatuado encontrado mu tilado..."
E que como por ar do diabo ou força da corrente energética, a luz sumiu, pifou, foi-se. Foi-se a luz com um apagão no bairro, foi-se o resto da notícia e ficou a angústia do que poderia ter sucedido e que não se lembrava pelo excesso de consumo de rodas. A mancha vermelha, fresca e húmida, da camisa rasgada pelas suas próprias mãos, parece que lhe trespassara para a sua pele. Arranha-se que nem louca esvairada para que aquilo lhe saia do corpo, da sua pele, do seu esqueleto.
Mil e uma voltas, sua mente entra numa espiral de redomas e turbilhões sem certezas, com dúvidas e medos.
Em desespero se aperalta para colocar os pés na rua, desejando encontrar uma explicação. Os olhos reviram em todas as direcções. Tinha que descobrir. Saber o que acontecera. Sabia perfeitamente onde a noite tinha acontecido. A discoteca Horizon, o ponto de encontro entre ela, os homens e as rodas.
Encontra portas encerradas, janelas presas e sem forma de lá entrar. A menos que, a menos que invada pela porta de segurança que apenas certos e determinados clientes tinham acesso estritamente reservado a passar por aquela passagem secreta. Balança na incerteza medonha do entre e não entra. Receosa do que poderá encontrar no fim daquele túnel, entra, acende a luz e tudo vazio. A casa ainda não fora limpa, estava tal e qual como o fim de uma noite de discoteca. Avança por todos os cantos e recantos em busca de algo que decifre o que em si se colou. Nada, nem sinal de igualdade entre o que em si se encontra e algo que poderia estar por ali derramado.
Supõe o pior. Talvez aquele ser a levara, à força, amordaçada para um outro local.
Estrondo, ouve um ruído estrondoso do bater de uma porta e de vidros a estilhaçar. Uma sombra se movimenta em frente a uma lamparina solar que estravasse por uma frincha aberta de uma das janelas. Percebe-se que pela espessura daquela sombra, o seu dono se trata de um homem. Alto provavelmente e bem constituído, já que as sombras têm por mania engordarem o seu real reflexo.
Assustada, refugia-se atrás do balcão, não fosse a sombra a observar e a obrigar a viajar com ela novamente para locais mais estranhos. Se antes já estava assustada, mais o ficou quando se apercebeu a quem pertencia aquele semblante ambulante negro. De assustada ficou aterrorizada. Fantasma. Só pode ser. Horrendus Horribilis. Pinturas e piercings ambulantes. My God…
Mas as noticias tinham noticiado que… Não, não pode ser…
Tenta refugiar-se o máximo possível. Silenciar-se na totalidade para não dar sinais de sua presença.
Mas já era tarde demais. A sombra já a tinha descoberto. A sua brisa feminina se tinha tornado presença nas suas narinas desde a noite anterior. Ele que sempre tivera um faro demasiadamente apurado. Sabia que ela ali se encontrava, se escondera precisamente atrás do balcão mal se apercebera de presença alheia. Sabia que ela iria voltar.
Contorna o balcão com os seus tamancos gigantes fazendo ranger o território escondido.
Ela busca um refúgio ainda mais isolado possível. Esbata-se com os seus próprios medos do que acontecera e do que acontecerá.
O cheiro vermelho ainda é snifado pelas suas narinas misturado com o cheiro da sombra. Escondida, apercebe-se de que a sombra, ou o seu progenitor trás consigo algo idêntico, uma mancha vermelha, já escurecida, mas com um cheiro inalador idêntico ao que ela possui invisivelmente na sua pele.
O cheiro vermelho ainda é snifado pelas suas narinas misturado com o cheiro da sombra. Escondida, apercebe-se de que a sombra, ou o seu progenitor trás consigo algo idêntico, uma mancha vermelha, já escurecida, mas com um cheiro inalador idêntico ao que ela possui invisivelmente na sua pele.
Medo avassalador infringe por aquele espaço.
Sente que um braço másculo se dirige a ela. Fica aterrorizada pelo seu descobrimento. Ele vinha para acabar o que não conseguira na noite anterior. Era o pensamento que se esbatia no seu coração. Não se mexe. Se ele quer luta, a irá ter, deixa a sua mente fugir para o lado mais agressivo.
- Vem! – Ouve ela numa voz fininha. Estupefacta com aquele timbre de voz, mas receosa teima em não sair daquele escuro local. Nem respira, não fosse ele pensar que se enganara e que ali não se encontra ninguém e que apenas confundira o ruido com alguma ratazana que por ali passara em busca de queijo.
- Sei que está aí. Não tenhas medo, vem. Volta ela a ouvir a voz fina e grave.
- Não te magoarei nem te irei forçar a sair daí. Sei o que buscas e sei o que te vem na mente.
- Cala-te – retorquiu enfiando-lhe um pontapé, fazendo-o inclinar-se para a frente batendo com a fronha na madeira a fazer de balcão. Ela aproveita para sair do cubículo e fugir. Rodeia tudo o que ali envolve e já não encontra uma saída. Fica tudo meio confuso, desconexo, tudo se transformou num instante labirinto.
- Espera, temos de conversar.
Agarra numa cadeira e prepara-se para lhe afinfar na fusa quando se apercebe de algo. De um corte possuído no seu braço. Mais mil e umas voltas o seu pensamento deu, dando por ganho o que de inicialmente imaginou. Tentou abusar dela e ela se defendeu.
Inerte, com a cadeira na mão sente o vibrar no seu bolso. Era o seu telemóvel. Ele não se mexia, não saía do local em que se encontrava debruçado segurando a face que escorria sangue de uma fonte. Insere a mão no bolso, desloca o sistema vibratório e vê a recepção de uma mensagem de imagem. Abre com um olho no telemóvel e outro no sujeito. Vê a imagem, suspira, e questiona a veracidade de tal facto.
- Sim, fui eu que te enviei essa imagem – exclama a sombra ambulante e ensanguentada e de voz grave e fina.
- Mas, o que isto quer dizer?
- Deixas-me explicar ou vais obrigar a minha cara sentar à força na cadeira?
Repousa as quatro pernas de madeira sobre o chão, dando uma oportunidade à sombra de se afirmar.
- Não te recordas de nada da noite passada? Pois, eu também não me recordo lá muito. Estávamos os dois imensamente em estado Zen ou mais além.
- Não venhas com rodeios, desembucha.
- Depois de muitas pastilhas e de muito álcool acabamos por nos abraçarmos em danças corporais. Unas de nós mesmos. Nos infundimos num só em valsas rítmicas corporais. Não te forcei a nada, nem tu a mim.
- Quer dizer que eu e tu, aqui, no meio da gente toda…?
- Não, nada disso, apenas dançamos, abraçados, mas de tal maneira que parecíamos um único ser bailando na constelação de estrelas e que nada mais era além de eu, tu e a infusão de nos mesmos. Perdemo-nos nas valsas e acabamos por nos retirarmos do salão episcopal em direcção a um horizonte tribal. Nos refugiamos pelo caminho de asfalte em direcção a algures acabano num extenso areal. A melodia rítmica ainda em nós permanecia. Parecia que nos acompanhara, que não nos queria deixar sós, como se precisasse-mos de uma melodia de violinista para embelezar o nosso momento de confraternização. Enquanto se bebia a única garrafa de champagne trazida da discoteca e se umava um dos últimos cigarros, e inventávamos conversas e palavras novas para um novo dicionário que por aí se há-de editar, brincaste com o avistar de algo vindo do mar.
- Continuo sem entender o nosso envolvimento. Tinha observado que não despregavas olho de mim, mas pensei que eras apenas mais um.
- Deves pensar que és a única mulher interessante e além do mais, o meu caminho é antónimo da mulher. Mas enfim. Continuando a dissipar as tuas dúvidas. Recordo vagamente que te levantaste e que tentaste ir até junto da água para averiguar o que ali vinha ter. Gritas-te que era uma pessoa, mas não o era. Desloquei-me aos SSS até junto de ti descobrindo tal ser. Reparei que vinha inundado de uma cor vermelha que jorrava por cima da sua cabeça. Retirámo-lo da água para um local minimamente seco. Pesava toneladas. Ou talvez fosse o nosso estado alucinado que o fazia ser mais pesado.
- Isso quer dizer que…?
- Sim, isso mesmo. Não te forcei a nada e muito menos me agrediste. E de certa forma ainda abem que não o disseste. Pelo que me acabaste de fazer, rezo para que não me volte a cruzar contigo em situações deste género. Mas adiante. Recordo que depois de o estendermos no areal, ligamos para o INEM, e a partir daí só me recordo de acordar hoje de amanha no Hospital. Questionei o porque de eu ali estar, informando-me que tivera um ataque histérico muito provavelmente devido ao consumo exagerado de álcool e das rodas.
- E eu?
- Tu? Sinceramente não sei. Perguntei por ti, mas apenas me disseram que eu era a única pessoa naquele local.
- Então como fui eu parar a casa?
- Não sei.
- E quem nós socorremos? O que lhe aconteceu?
- Bem, parece que foi levado para uma clinica privada.
- Porque? Era algo assim tão importante.
- Talvez, dependendo da perspectiva de importância que lhe atribuas. Era um pássaro. Um falcão real. Fora ferido não se sabe muito bem como, mas trazia preso em si um alfinete na cabeça com uma mensagem.
- Ah? Como assim?
- Lê.
- “Se socorres este real pássaro é por que és boa pessoa. Não quero saber quem és, nem de onde és e muito menos qual o teu estatuto social. Cuida dele. E dá-lhe o trono que ele merece. É um falcão real. Está livre para ti. Cauda dele”.
- Estranho não é? Mas a verdade é que os nossos caminhos se cruzaram. Depois de me terem dado alto percorri o bairro em busca de ti. Tinha que te dar a mensagem. Ele pertence-te. Foste tu que o encontras-te. Pertence-te.
- Onde ele está?
- Está lá fora. A voar no mais alto dos céus a proteger-te. Foi ele que me indicou o caminho até ti. Que me fez reencontrar-te e ver a guerreira que tu és. Cuida-te. Toma conta de ti e do Real.
- Espera.
- Não posso.
- Por que?
- Tenho que ir ao hospital cuidar deste sangue derramado.
- Boa sorte. E obrigado.
Ergue suas pernas já menos trémulas e encontra a saída do tabernáculo nocturno. Olha para os céus e um rodopio acompanhado de um assobio do bico do falcão faz o sol brilhar intensamente. Percebe que tem agora um ser para criar. Para criar, e ao mesmo tempo quem a proteja. Já não sente o cheiro do sangue a infundir-lhe pelas narinas. Sente um ar mais puro a suavizar-lhe os pulmões e os olhos já não receiam. Num voo picado em direcção ao chão, abrindo as assas, repousa as suas patas de três unhas, sobre o braço estendido da sua progenitora humana. Sem retirar os pés da terra, esvoaça pelo caminho em direcção a um horizonte do seu lar, onde repousará o cansaço.
Cerra os olhos, e adormece. No alto, o assobio do falcão real suaviza em melodia o seu sono.
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